A luta pela Previdência Pública
A luta
pela Previdência Pública
Clemente Ganz Lúcio
Diretor Técnico do DIEESE
Frederico Melo
Técnico do DIEESE
dezembro de 2017
dezembro de 2017
Desde o envio ao Congresso Nacional da
Proposta de Emenda Constitucional 287 (PEC 287) em novembro de 2016, o governo
de Michel Temer e sua base aliada têm empreendido esforços intensos para
promover a reforma da Previdência. A pretensão inicial do governo era aprovar a
Proposta na Câmara de Deputados até abril de 2017 e, em meados do ano, no
Senado Federal. Devido à abrangência das medidas e em função da resistência de
diversos setores da sociedade, que identificaram redução de direitos na
proposta, o governo não conseguiu seu objetivo. No entanto, os interesses
vocalizados pelas agências de classificação de risco de crédito e por
economistas vinculados a instituições financeiras continuam pressionando pelas
mudanças das regras da previdência pública. Além disso, como as despesas
previdenciárias constituem o segundo maior grupo de despesas do orçamento da
União (depois das financeiras) e crescem em ritmo mais acelerado que as demais
despesas primárias, colocando em xeque o “teto dos gastos”, o governo insiste
na intenção. Recentemente, nas negociações com os parlamentares, foi
apresentada, extraoficialmente, uma nova proposta para a reforma da Previdência.
Mesmo adotando o discurso de que a nova proposta era mais branda do que as
versões anteriores e de que visava essencialmente combater privilégios, o
governo não logrou obter os votos necessários para aprovação de uma emenda
constitucional. De forma atabalhoada, a votação da PEC 287 foi novamente
adiada, para a segunda quinzena de fevereiro próximo. E, diante da dificuldade
de se aprovar proposta desse tipo em ano eleitoral, já se fala em novo texto.
Mas vale a pena analisar mais a fundo em que medida a nova proposta é menos
severa e se, de fato, combate os privilégios na sociedade brasileira.
No debate atual sobre a reforma da Previdência Pública, chama a
atenção a não apresentação oficial da proposta que está sendo negociada com os
congressistas[1].
Ou seja, a sociedade brasileira não tem conhecimento formal sobre uma proposta
de alteração da Constituição que afeta, direta e substancialmente, sua condição
de vida em casos de perda de capacidade de trabalho ou de renda e reorienta os
rumos de desenvolvimento do país. Apesar de não ter sido divulgada oficialmente,
é possível ter acesso ao que seria a nova proposta do governo[2].
Em linhas gerais, essa versão da PEC 287 estabelece, como regras de
aposentadoria voluntária ou programável:
1.
no Regime Geral de Previdência Social (RGPS, do
INSS), idade mínima de 62 anos (no caso de mulheres) ou 65 anos (no de homens) com
15 anos de contribuição pelo menos;
2.
no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS,
que é sistema de previdência de servidores públicos), os mesmos limites etários
(62, mulheres; e 65, homens) com ao menos 25 anos de contribuição, além de dez
anos de serviço público e cinco anos no cargo em que se aposentou; e
3.
no caso de professores (de ambos os sexos) da
educação básica, a idade mínima é de 60 anos, nos dois regimes, além dos demais
requisitos por regime acima citados.
Com essas regras, institui-se de modo generalizado e estrito idade
mínima para aposentadoria e ficam extintas as aposentadorias proporcionais por
idade do RPPS e as aposentadorias por tempo de contribuição do RGPS. A idade
mínima de aposentadoria das mulheres se eleva de 60 anos atualmente em vigor
para 62 anos. Essas regras também significam, de forma geral, adiamento da
idade de aposentadoria de professores e professoras da educação básica. Pela
proposta, todos esses limites etários também irão ser elevados gradual e
automaticamente com o aumento da expectativa de sobrevida da população
brasileira aos 65 anos de idade.
Em relação às regras gerais de aposentadoria contidas no texto da PEC
287 aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, essa versão “não
oficial” inova somente no tempo mínimo de contribuição no Regime Geral. A
versão aprovada na Comissão estabelecia 25 anos como tempo mínimo de
contribuição para o INSS e a versão “não oficial” determina 15 anos, como é
hoje. Em relação à situação atual, porém, a versão “não oficial” reduz o valor
do benefício para quem se aposentar pelo tempo mínimo de contribuição. Hoje, o
homem que se aposenta no RGPS aos 65 anos com o tempo mínimo de contribuição
recebe um benefício com valor calculado com base em 85% da média das 80%
maiores contribuições; e, pela “PEC não oficial”, o cálculo consideraria 60% da
média de todas as contribuições.
Embora não haja diferença para a forma de cálculo do valor do
benefício fixada no texto do substitutivo aprovado na Câmara, vale notar que o
benefício de valor equivalente a 100% da média de todas as contribuições
exigiria quarenta anos de contribuição para a Previdência. Atualmente, quem se
aposenta por idade no RGPS com 30 anos de contribuição recebe 100% da média das
80% maiores contribuições (ou seja, média com descarte das 20% menores
contribuições). Ressalte-se que, tanto na proposta substitutiva da Comissão
quanto na versão “não oficial”, o salário mínimo continuou sendo o piso dos
benefícios da Assistência e da Previdência; ou seja, nenhum benefício pode ser
inferior a um salário mínimo.
Os trabalhadores rurais, homens e mulheres, continuam muito afetados
pela proposta de mudança. A versão mais atual da PEC mantém a equiparação de
regras de aposentadoria dos empregados assalariados rurais às regras dos demais
assalariados. Todos teriam que contribuir por 15 anos e se aposentar aos 62
anos (mulheres) e 65 (homens). Essas regras praticamente inviabilizam a
aposentadoria dos assalariados rurais, dadas a sazonalidade da contratação e as
condições de trabalho no campo. Também os trabalhadores da agricultura familiar
enfrentarão grande dificuldade para se aposentar, se a “PEC não oficial” vier a
ser aprovada, em que pese o discurso de representantes do governo e de sua base
aliada de que os segurados especiais da economia familiar foram poupados de
mudanças. Apesar de manter a idade mínima antecipada atualmente em vigor (55
anos para mulheres e 60 anos para homens), a redação da versão “não oficial” impõe
o período mínimo de 15 anos de contribuição mensal e individual dos membros da
família, o que é incompatível com sua realidade produtiva e econômica.
Já em relação às pensões, o texto “não oficial” da PEC mantém as
propostas do substitutivo de calcular o valor do benefício segundo cotas por
dependentes, sendo que, por lei, filho(a) só é considerado(a) dependente até os
21 anos. Assim, se a pessoa filiada à Previdência que faleceu só tem o cônjuge
por dependente, o valor da pensão será de 60% do valor da aposentadoria,
respeitado o piso de um salário mínimo. Além disso, também preservando as
regras da versão do substitutivo aprovada na Comissão da Câmara, fica proibido
acumular dois ou mais benefícios previdenciários (aposentadorias e ou pensões),
com algumas exceções, das quais a mais importante reza que só se pode acumular
pensão e aposentadoria com valor conjunto de dois salários mínimos. Também fica
mantida a extensão ao Regime Próprio da regra atual do Regime Geral que
condiciona o prazo de duração das pensões à idade do cônjuge, ao tempo da união
conjugal e ao tempo de contribuição da pessoa segurada que faleceu. Ou seja,
não há novidade na versão “não oficial” em relação às regras para pensões
previstas no substitutivo.
A proposta “não oficial” traz algumas medidas de melhoria de
financiamento e da contabilidade da Previdência. Conforme já estava
estabelecido no texto aprovado pela Comissão da Câmara, a nova versão determina
a não isenção ou redução da alíquota das contribuições previdenciárias, a não
ser para as pequenas empresas enquadradas no Simples Nacional e para os
contribuintes favorecidos, tais como os microempreendedores individuais. Essa
medida elimina as isenções de setores exportadores, inclusive agronegócio, mas
não altera a isenção das entidades filantrópicas. Adicionalmente, a versão mais
atual inova ao determinar que as contribuições para a Seguridade Social (as
contribuições previdenciárias, a Cofins, CSLL e outras) não serão objeto de
medidas de desvinculação orçamentária, isto é, não sofrerão impacto da DRU
(Desvinculação das Receitas da União).
Uma mudança relevante na versão “não oficial” diz respeito à
Assistência Social. O novo texto retira todas as menções ao Benefício de
Prestação Continuada (BPC), o que significa que, em princípio, continuariam
prevalecendo as regras atuais (de idade mínima para o BPC de idoso pobre aos 65
anos; de renda familiar; de deficiência a ser considerada para o BPC de pessoa
com deficiência etc.).
Conforme pode se constatar, portanto, essa versão “não oficial” de
reforma da Previdência Pública altera relativamente pouco o conteúdo da versão
substitutiva aprovada pela Comissão da Câmara dos Deputados. As principais
mudanças positivas referem-se à retirada de mudanças no benefício da
Assistência Social (BPC), à apresentação mais fidedigna do Orçamento da
Seguridade (que ainda requer maiores correções) e à manutenção do tempo mínimo
de contribuição atual ao RGPS, de 15 anos, embora com redução significativa do
valor do benefício para quem se aposentar com o tempo mínimo de contribuição.
Nem a versão original da PEC 287 enviada pelo Poder Executivo, nem a
versão substitutiva aprovada na Comissão da Câmara ou essa versão “não oficial”
contemplam melhorias na gestão da Seguridade Social e na fiscalização de seus
recursos. Nenhuma dessas versões tampouco propõe medidas para ampliar o grau de
cobertura da Previdência. No sentido contrário do fortalecimento das finanças
da Previdência e da inclusão na rede de proteção social, a Reforma Trabalhista,
que recentemente entrou em vigência, trará corrosão na capacidade financeira e
na cobertura da Previdência. Ao instituir ou ampliar as possibilidades de
contratação de força de trabalho por meio de contratos com baixo grau de adesão
à Previdência e ao favorecer a aceleração da rotatividade de trabalhadores, a
Reforma Trabalhista gera, ao mesmo tempo, a desproteção social e o rebaixamento
do financiamento à Seguridade Social, mesmo se as regras atuais não fossem
alteradas. Além da contratação de trabalhadores autônomos e intermitentes, a
“pejotização” de trabalhadores (isto é, sua contratação como pessoas jurídicas)
ameaça o sistema de financiamento da Previdência.
Toda essa sequência de propostas para a Previdência Pública continua
apoiada, em essência, numa concepção da Previdência exclusivamente como fonte
de despesas para o Estado, o que, segundo essa abordagem, exige uma redução de
gastos, por meio de elevação das condições de acesso aos benefícios e
rebaixamento do valor dos benefícios. Ao lado dessa visão financista sobre a
Previdência Pública, também vigora uma perspectiva de privatização da
Previdência, com incentivo ao deslocamento para a previdência privada de
trabalhadores mais bem posicionados em empregos de qualidade. As perspectivas
financista e privatista da Previdência Pública não consideram a previdência
como um direito social, conforme consta no artigo sexto da Constituição
Federal. A consideração da previdência como direito social exigiria uma reforma
que ampliasse a cobertura, favorecesse os empregos de boa qualidade e o
desenvolvimento e garantisse a sustentação da rede de proteção social.
A verdadeira discussão por trás da disputa pela Previdência Pública
diz respeito ao Estado que se quer e à forma de seu financiamento. Ou seja,
está em discussão em que medida o direito à previdência vai ser efetivado e
como deve ser o financiamento da política previdenciária. Sob essa perspectiva,
fica patente que os grandes privilégios que vigoram no país não estão na Previdência.
Os grandes privilégios podem ser identificados, por exemplo, na estrutura
tributária, ou seja, no financiamento do Estado. No caso brasileiro, a estrutura
tributária reflete a distribuição de forças da sociedade. Uma das fontes
principais de privilégio no país é não contribuir ou contribuir relativamente
pouco para sustentação do Estado e das políticas públicas. Não pagar tributos
ou pagar pouco é um privilégio; e possui esse privilégio o segmento social que
tem força para tal. Assim, a isenção do imposto de renda para distribuição de
lucros e dividendos; a baixa tributação das aplicações financeiras e das
heranças; a baixíssima tributação da propriedade fundiária; o desmonte da
fiscalização previdenciária; e as constantes renegociações de dívidas
tributárias, com generosos perdões, evidenciam a verdadeira estrutura de
privilégios do país. Nada é mais indicativo da real fonte de privilégios do
país do que a aprovação pelo Congresso Nacional, durante as intensas
negociações da reforma da Previdência, de reduções brutais de dívidas com a
Previdência e de uma reforma trabalhista que estimula a contratação de
trabalhadores sem contribuição para a Previdência.
[1] No
sítio oficial da Câmara dos Deputados sobre a PEC 287, as últimas informações
adicionadas são de junho de 2017 (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2119881,
acesso em 18/12/2017)
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