Brasil: futuro de exploração ou a retomada do leme?

Brasil: futuro de exploração ou a retomada do leme?


Clemente Ganz Lúcio[1]

A “ponte para o futuro” lançou o país nos braços dos interesses estrangeiros, com a entrega dos ativos econômicos ao mercado internacional, desmobilização e desmonte dos instrumentos públicos de coordenação e indução do desenvolvimento, além da criação de regras que reduzem drasticamente o tamanho do Estado. Mais uma vez, o país virou uma grande piada no exterior, como tinha acontecido com o 7 x 1 e ocorre agora também com o “cai-cai do menino Neymar”. As fundações da soberania nacional brasileira para projetar o futuro do país ficaram sob essa enorme ponte que atalhou a democracia brasileira. Falou-se que era uma pinguela. Grave engano! Em dois anos, a ponte mostrou-se uma construção larga, dinâmica e forte, que mudou drasticamente as possibilidades do futuro brasileiro.
O grande jogo
Há um complexo processo econômico, social, político e cultural que aprofunda e expande a acumulação de riqueza em escala global e acirra a concorrência entre as empresas, por meio da flexibilidade para alocar a força de trabalho e a tecnologia.
O sistema produtivo está subordinado à lógica da acumulação da riqueza financeira e rentista. Os ganhos daqueles que vivem exclusivamente de renda se sobrepõem à estratégia de investimento das empresas. A alocação das plantas empresariais busca o menor custo, com altos investimentos em tecnologia e economia ou exclusão quase total do trabalho humano. As corporações engendram força política para enquadrar os estados e governos e conseguir reformas institucionais que reduzam impostos; imponham garantias de que o direito privado não será ameaçado pelas formas coletivas de deliberação e pelo voto universal; assegurem o avanço da desregulamentação do sistema financeiro; protejam a transmissão de heranças e a valorização de patrimônios; simplifiquem as restrições para a apropriação pela iniciativa privada da riqueza natural (minério, terra, água, floresta etc.); acalentem a privatização de empresas estatais e a aquisição e fusão de organizações; e protejam o pagamento das dívidas públicas.
O desenvolvimento, resultado da relação entre o Estado e os sistemas produtivos nacionais - que geram capacidade manufatureira e criam empregos e salários, impulsionando o crescimento do mercado interno de consumo - perde encanto econômico e político. O Estado regulador da distribuição do produto social, que visa minimizar a desigualdade e gerar coesão social, está em desuso. O comando agora é feito por uma grande concentração do sistema financeiro, pela ampliação da centralização da propriedade e a reorganização da estrutura produtiva. As democracias devem ser suportadas e, para isso, precisam ser controladas.
O Brasil nesse jogo
O Brasil foi submetido aos interesses das multinacionais e, hoje, promove gigantesca entrega de sua riqueza natural e de seus ativos econômicos. As mudanças no pré-sal, por exemplo, deram às petroleiras internacionais as principais reservas de petróleo em águas profundas; a venda de ativos da Petrobras entregará para essas mesmas empresas a capacidade industrial e abre definitivamente o mercado interno para a importação de produtos industrializados. A Petrobras, com livre política de preços, oferece aos investidores lucros vultosos.
As empresas estatais estão sendo preparadas para a privatização. A próxima é a Eletrobras, em uma lista de mais de 100. A autorização de vendas de terras para estrangeiros está na pauta do Congresso. As terras são agriculturáveis e junto, na entrega, seguem florestas, minérios e água, as maiores e melhores reservas disponíveis no planeta!
Embraer e Braskem são dois exemplos de empresas brasileiras multinacionais e de ponta na tecnologia, pesquisa e produção industrial, que estão sendo vendidas a preço de banana. O combate à corrupção foca na destruição de grandes empresas nacionais com presença mundial de ponta, como o que ocorre no setor da construção e da carne, para citar dois casos.
O Estado é desmontado. A emenda constitucional que impôs um teto de gasto por 20 anos quer reduzir o tamanho do Estado à metade. A elaboração da proposta orçamentária da União para 2019 já indica o que serão os cortes. Pode-se dar adeus às políticas públicas e à capacidade de investimento federal.
A indústria, que já representou quase um terço do PIB brasileiro, está reduzida à casa de um dígito. É uma imensa e crescente regressão do setor industrial. Com a destruição deste segmento, abre-se o mercado para a importação de todo e qualquer tipo de quinquilharia manufaturada.
A agricultura e pecuária são as fronteiras da regressão do sistema produtivo à reprimarização. O país será produtor primário de grãos, carnes e outros alimentos. Não é impossível que venhamos a trocar uma caixa de laranja, com 120 unidades, por um pote de suco industrializado, que contém apenas quatro! Essa pode ser a escala da regressão industrial!
Os bancos seguem lucrando bilhões e mais bilhões, sem parar. Um paraíso de segurança e de lucro fácil.
Nosso futuro: um país riquíssimo, de ricos que vivem no exterior e retiram daqui, como ocorre desde 1500, as reservas naturais e a riqueza produzida pelo trabalho do povo brasileiro. O Brasil pode ser tornar uma nação de carentes. Um território urbano com cenário de guerra, uma população pobre e miserável que vai aumentando, um país sem esperança, com o olhar firme no infinito, mas que nada vê. Inertes e sem energia, os brasileiros veem a ponte para o futuro entregar a nação, que, submissa e submetida a interesses e capital estrangeiros, abre mão da soberania e da capacidade política de construir um projeto econômico e social de crescimento e desenvolvimento.
Reforma trabalhista
As reestruturações institucionais avançam nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, com destaque para a reforma da legislação e do sistema de relações de trabalho, com o objetivo de: reduzir o custo do trabalho; criar a máxima flexibilidade de alocação da mão de obra, com as mais diversas formas de contrato e ajustes da jornada; reduzir ao máximo a rigidez para demitir e minimizar os custos de demissão, sem acumular passivos trabalhistas; restringir ao limite mínimo as negociações e inibir contratos ou convenções gerais em detrimento de acordos locais realizados com representações laborais controladas; além de quebrar os sindicatos.
No Brasil, a reforma alterou a hierarquia normativa em que Constituição, legislação, convenções coletivas e acordos eram pisos progressivos de direito. A partir de agora, a Constituição é um teto, a legislação, uma referência de direitos que podem ser reduzidos pelas convenções; os acordos podem diminuir garantias previstas em leis e convenções e; o indivíduo “está livre” para abrir mão de muito do que foi conquistado a duras penas. Os trabalhadores e os sindicatos “ganharam prerrogativas” para diminuir salários, garantias, flexibilizar contratos, ampliar ou reduzir jornada, quitar definitivamente, na presença coercitiva do empregador, os direitos. O acesso dos trabalhadores à justiça foi limitado. Já as empresas adquiriram inúmeros instrumentos que dão a elas a máxima garantia e proteção jurídica. Estão livres e seguras para ajustar o custo do trabalho. 
São parte das mudanças vários novos contratos de trabalho (tempo parcial, trabalho temporário, trabalho intermitente, autônomo exclusivo, terceirizado sem limite, teletrabalho) que permitem regular o volume de trabalho à produção no dia, na semana, no mês, ao longo do ano. Esses contratos podem ter ampla flexibilização em termos de jornada (duração, intervalos, férias, banco de horas etc.). As definições do que é salário são alteradas e os valores podem ser reduzidos, assim como outras obrigações legais. A demissão é facilitada, inclusive a coletiva, com formas diversas de quitação definitiva de débitos trabalhistas.
O poder de negociação dos sindicatos é fragilizado, com o “novo poder” de reduzir direitos, a interposição de comissões de representação dos trabalhadores, nas quais é proibida a participação sindical, ou com a autonomia do indivíduo para negociar diretamente, medidas que, enfim, quebram o papel sindical de escudo coletivo e protetor. Como já ocorre em outros países que adotam mecanismos semelhantes, os trabalhadores serão incentivados e estimulados, por meio de inúmeras práticas antissindicais e de submissão patronal, a não apoiar ou financiar os sindicatos. Ficarão submetidos ao poder das empresas, pressionados para aceitar acordos espúrios diante do medo de perder o emprego.
A justiça do trabalho, que passa a ser paga, teve sua tarefa reduzida à análise formal dos pleitos. A lei criou uma tabela que precifica o ônus da empresa até, no máximo, 50 vezes o salário do trabalhador!
Ao todo, são mais de 300 alterações na legislação trabalhista, operando um verdadeiro ataque aos trabalhadores. A reforma trabalhista brasileira é um exemplo extremo, comparada a outras 640 realizadas em 110 países entre 2008 a 2014. 
Os sindicatos estão desafiados a se reestruturar profundamente para construir uma trajetória diferente daquela que a reforma se propõe a realizar. 
O emprego
O crescimento econômico, que beiraria os 4%, mirrou e agora as estimativas oficiais mais otimistas indicam que o PIB deve crescer apenas 1,6% em 2018. No mercado de trabalho, os 1 milhão de empregos formais que seriam gerados neste ano tornaram-se algo em torno de 200 mil. Nessa dinâmica, serão necessários 15 “breves” anos para repor as vagas fechadas pelo projeto da ponte para o futuro
A população brasileira em idade de trabalhar é de 170 milhões de pessoas (Pnad Contínua, IBGE, junho 2018), das quais cerca de 104 milhões formam a força de trabalho. Desse último número, 91 milhões são ocupadas e 13 milhões, desocupadas. O semestre foi encerrado com uma taxa de desemprego de 13%, segundo o IBGE. Em dezembro de 2016, estava em 6,4% e foi aumentando até atingir 13,6%, em 2017.
As desigualdades que perpassam a estrutura social brasileira também estão presentes no mercado de trabalho. Por exemplo: no Nordeste, a taxa de desemprego é de 16%, o dobro daquela observada no Sul (8,4%); entre os homens, é de 13,6% e, entre as mulheres, de 15%; entre os jovens de 18 e 24 anos, o desemprego chega a 28% e entre os de 14 e 17 anos, a 44%; entre os brancos, fica em 10,5%, entre os pardos, em 15,1%, e entre os negros representa 16%. A ponte para o futuro preserva e aumenta essas desigualdades.
A complicada situação econômica leva ao aumento da subutilização da força de trabalho, que já atinge 27,7 milhões de pessoas. Além dos 13 milhões de desempregados, são 4,6 milhões de trabalhadores que desistiram de procurar emprego, devido ao desalento, e 10,1 milhões de subocupados.
            Os assalariados do setor privado são 37% da força de trabalho e os ocupados no setor público, 12%, totalizando cerca de 44,6 milhões de trabalhadores. Os assalariados sem carteira são 12%, os trabalhadores domésticos, 7%, os por conta própria, 25%, e os que atuam em negócios familiares, sem receber remuneração (trabalhador familiar auxiliar), chegam a 2%. Nesse universo de 43 milhões de pessoas, crescem a informalidade, a precariedade e a insegurança.
O nível de ocupação e o tamanho da força de trabalho ficaram estáveis no semestre porque 774 mil pessoas saíram do mercado. Entre 2017 e 2018, cresceram a ocupação precária dos conta própria e os assalariados sem carteira de trabalho, inclusive no emprego doméstico. 
No futuro, trabalhadores que, no momento, desistiram de buscar uma vaga e os que têm se virado na precariedade voltarão a pressionar o mercado de trabalho, querendo emprego.
Tudo indica que o segundo semestre continuará com mais do mesmo. O país andando de lado, anêmico economicamente, resultado da terapia de alquimistas interessados em entregar o país aos interesses internacionais. A ponte já cedeu terra, minérios, água, florestas, empresas estatais, serviços públicos, empresas privadas. Quem compra: (a) reestrutura, demite e coloca tecnologia no lugar do trabalhador ou; (b) transforma o que comprou em maquiladora do produto ou serviço importado, com postos de auxiliar e ajudante ou; (c) fecha a empresa, demite e ocupa o mercado com produtos importados. Ganhando muito, os investidores ficam felizes com a ampliação das graúdas remessas de lucros. Nessa dinâmica, a economia continuará a patinar, o emprego minguará ainda mais e o mercado interno de consumo, formado pelo poder de compra das famílias, também. O Estado austero corta gasto e investimento. Com essas escolhas, o emprego acabará como peça de museu ou promessa para um futuro inexequível.
Para quem está empregado, resta a reforma trabalhista. Para ilustrar, a Fiesp, primeiro, com pato e, agora, sapo, entrega a pauta aos sindicatos dos metalúrgicos para dar início às negociações do segundo semestre. De uma convenção coletiva de 64 itens, a entidade patronal propõe alterar 55, 38 ou qualquer outra quantidade de cláusulas, a depender do grupo setorial, rebaixando as condições de trabalho. 
O futuro
O contexto situacional para o qual a “ponte para o futuro” nos trouxe é desolador para quem pensa e quer um país soberano, que conduza uma estratégia de desenvolvimento econômico e social integrado, de maneira virtuosa, junto à economia internacional.
Será decisivo o resultado das eleições de outubro para reverter muito do que foi destruído. Por isso, tanta coisa estranha e inédita acontece e acontecerá nesse pleito. O resultado eleitoral poderá representar novas possibilidades para se recolocar o projeto de desenvolvimento em outras bases firmes, com soberania nacional.
Dentro dessa possibilidade, a nação terá a tarefa mais dura e severa pós-redemocratização: reparar os grandes estragos gerados pelas inúmeras fraturas que foram expostas por todas as opções adotadas e a conjuntura criada. E as dores para consertar todos esses danos, em muitos casos, precisarão ser suportadas sem anestesia. A inteligência coletiva para recriar as possibilidades de desenvolvimento deverá dar à democracia brasileira capacidade de firmar compromissos que ultrapassem, de forma extraordinária, a soma trágica das demandas corporativas.



[1]Sociólogo, diretor técnico do DIEESE.

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