Desafios da reforma trabalhista

Desafios da reforma trabalhista

Clemente Ganz Lúcio[1]

Mais uma vez, a proposta de reforma trabalhista surge no Brasil, em momento de grave crise econômica, como meio de aumentar a competitividade e a produtividade e gerar empregos. Isso ocorre por iniciativa do governo federal, que encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.787/2016, hoje na Comissão Especial da Reforma Trabalhista. Convidado para uma audiência da Comissão, o DIEESE fez uma apresentação, cujos principais pontos aparecem aqui sistematizados. 

Do que trata?
A questão trabalhista trata de regular as relações sociais de produção econômica e da distribuição dos resultados dessa produção, por meio do sistema de relações de trabalho. Este, por sua vez, define os processos pelos quais trabalhadores e empregadores – do setor privado e público -, por meio das organizações de representação de interesse coletivo, se relacionarão para estabelecer como funcionarão as regras laborais de produção de bens e serviços (jornada de trabalho, formas de contratação etc.) e sua distribuição (salários, benefícios etc.). Trata-se, portanto, de definir como se constituem e que poderes têm os sujeitos coletivos de representação, de que maneira se relacionarão no tempo para definir a substância dos direitos e deveres.

Mexer tem impacto?
O sistema de relações de trabalho tem alto impacto sobre o desenvolvimento do país e a qualidade das interações da vida em sociedade, na medida em que define as regras das relações sociais de produção de uma economia. Pode-se considerar que desenvolvimento econômico é sinônimo de incremento da produtividade do trabalho, algo que se busca construir para viabilizar o desenvolvimento social. Quando se mexe nas regras das relações laborais, incide-se, direta ou indiretamente, sobre as possibilidades de aumento da produtividade. Por isso, entendemos que o sistema de relações de trabalho deve ser regulado com uma intencionalidade maior para gerar o bem comum e promover o bem-estar e a qualidade de vida, além de buscar o fortalecimento da capacidade produtiva da economia e de gerar a inserção competitiva no mercado internacional, dimensões que, articuladas, cumprem papel essencial no incremento da produtividade e na repartição entre lucro, salários e tributos.
Ao regular o sistema de relações de trabalho, atua-se no coração do sistema capitalista de produção e no âmago dos conflitos de interesses entre capital e trabalho. Busca-se, nas condições históricas do momento, gerar capacidade para que os sujeitos enfrentem esses conflitos e deem soluções duradouras que, entretanto, serão sempre provisórias, até que nova expressão do conflito seja enfrentada e gere novo acordo, permanentemente provisório. Nessa perspectiva, o sistema deve ter a capacidade para construir compromissos das partes com o acordo e a efetividade dele, em termos de práticas trabalhistas no campo da produção.
O sistema também constitui sujeitos de representação para tratar do conflito por meio da negociação, prática do diálogo social entre interesses. Nesta opção, aposta-se que o diálogo é capaz de dar tratamento aos conflitos, gerando regras que o administram em condições que são aceitas como adequadas naquele momento histórico. O sistema deve favorecer um ambiente pacificado, no qual as partes combinam as regras que se comprometem a cumprir.

Há motivos para uma reforma no Brasil?
Sim! Primeiro, porque mais de um terço dos trabalhadores está fora do sistema, sem nenhuma proteção sindical. Segundo, porque aqueles que participam do sistema estão descontentes e acionam a justiça em milhões de novos processos trabalhistas por ano. Terceiro, porque o sistema não prioriza a negociação como solução efetiva do conflito, transferindo para a Justiça grande parte dessa responsabilidade. Quarto, porque a relação entre a legislação e negociação tem gerado insegurança jurídica para trabalhadores e empregadores. Quinto, porque há mudanças profundas no mundo do trabalho e nas ocupações, que precisam ser incorporadas e tratadas pelo sistema. Sexto, porque há distorções que precisam ser corrigidas na forma de representação, nos processos negociais e de relação.
Desde a criação, a Consolidação das Leis do Trabalho é objeto de aprimoramentos que a modernizam, o que pode e deve continuar. A Constituição de 1988 definiu uma série de direitos que nunca foram regulados, mas que deveriam passar a ser. É salutar promover o aprimoramento contínuo, desde que a intencionalidade seja verdadeira.

Qual é o sentido de uma reforma?
Uma reforma deve sempre considerar o sistema, entendendo-o como um todo articulado e que, ao longo da história, constitui cultura e forma práticas. Virtudes e defeitos estão associados. As regras estão consignadas na Constituição, na CLT, na legislação e em outros atos do poder Executivo e Judiciário. A complexidade permeia as relações de produção. Alterar qualquer parte do sistema é uma operação complexa que exige análise dos múltiplos rebatimentos e a observação de um novo equilíbrio geral do sistema.
As reformas devem buscar melhorar o funcionamento do sistema de relações de trabalho para todos, de maneira que as relações de produção sejam capazes de induzir uma economia robusta, capaz de gerar riqueza e renda para o bem-estar social e a qualidade de vida de todos, em condições ambientais sustentáveis. Como o conflito de interesses está no cerne das relações sociais, reformar o sistema é dar novas capacidades e potencialidades para que os sujeitos coletivos (sindicatos) enfrentem e deem tratamento aos problemas, em um mundo em permanente mudança.
Por isso, a primeira diretriz deve ser o pleno e adequado incentivo à negociação direta entre as partes, empregadores e trabalhadores. A normativa dos processos negociais deve destacar os procedimentos que favorecem ao equilíbrio nas relações, incentivando o diálogo e criando mecanismos próprios para o enfrentamento dos impasses e solução dos conflitos. Dessa perspectiva, a negociação deve ser incentivada em todos os níveis, desde o local de trabalho, na região e categoria, no setor e no âmbito nacional. Acordos em todos os níveis podem estar articulados, definindo-se limites e atribuições para cada etapa, bem como estabelecendo-se relações virtuosas de complementariedade com a legislação.
Apostar na negociação é acreditar na capacidade dos sujeitos de representação coletiva, no espaço de uma sociedade democrática, darem solução aos problemas existentes nas relações trabalhistas, regulando as relações sociais de produção e de distribuição, permitindo flexibilidade como atributo para maximizar a capacidade produtiva da sociedade, em condições de saúde e meio ambiente adequadas, bem como para aperfeiçoar a justiça dos sistemas distributivos.
A segunda diretriz é proporcionar possibilidades reais para a constituição de sujeitos de interesse altamente representativos, com capacidade real e legal para conduzir processos negociais e celebrar acordos. O direito de organização sindical desde o local de trabalho deve orientar e incentivar a autorregulação da organização.
A terceira diretriz deve buscar a diminuição da judicialização dos conflitos por meio da solução direta entre as partes. Um sistema que gera milhões de ações individuais e coletivas na justiça do trabalho demonstra que tem problemas de capacidade para resolver diretamente os conflitos. A Justiça tem o papel de mediação e de conciliação diante dos impasses e conflitos, além de promover os interesses gerais na interpretação das normas legais e atuar diante dos descumprimentos destas.
Uma das 10 maiores economias do planeta não pode aceitar ter mais da metade da força de trabalho produzindo sem proteção social, com medo da negociação ou da organização sindical dos trabalhadores, ou ficar refém das práticas antissindicais de alguns empregadores. O desafio é ir além, apostando que trabalhadores e empregadores poderão até errar na solução encontrada, mas que o processo, ao ter continuidade, gerará inciativas de correção dos erros e que esse aprendizado tem valor universal como prática democrática e capacidade para a intervenção social.
As mudanças devem ser pensadas com processos de transição, nos quais a busca do novo precisa ser voluntária e incentivada pelas boas práticas. Desvios devem ser coibidos e a experimentação cuidadosamente testada e avaliada.
Um sistema desse deve gerar garantias, para os empregadores e trabalhadores, de que a atividade econômica da empresa será incentivada e protegida, que resultados serão distribuídos conforme as regras pactuadas. O sistema deve valorizar a boa-fé das partes, assim como punir severamente quem atua de maneira contrária.

O projeto em debate no Congresso Nacional
O projeto em debate no Congresso trará grande impacto sobre o sistema de relações de trabalho, pois altera as regras referentes ao trabalho em tempo parcial; define a representação dos trabalhadores no local de trabalho, eleição e funções; afirma o incentivo à negociação coletiva em vários temas, como férias anuais, jornada de trabalho, participação nos lucros e resultados, horas “in itinere”, intervalo intrajornada, ultratividade, Programa Seguro-Emprego, plano de cargos e salários, regulamento empresarial, banco de horas, trabalho remoto, remuneração por produtividade, registro da jornada de trabalho; além de redefinir trabalho temporário.
Essa inciativa está em sintonia com a grande mobilização de reformas trabalhistas implementadas em mais de uma centena de países, desde o início da crise econômica, cujo ápice foi em 2008. A queda do nível de atividade produtiva, a recessão, o desemprego, a crise fiscal, entre outros, são problemas vivenciados por quase todo o mundo, enfrentados por muitos países com planos que incluíram uma agenda de reformas sociais e laborais.
A OIT (Organização Internacional do Trabalho) publicou um estudo[2], produzido pelos pesquisadores Dragos Adascalieti e Clemente Pignatti Morano, sobre reformas legislativas laborais e de mercado de trabalho em 110 países, promovidas no período de 2008 a 2014. A pesquisa atualiza investigações anteriores, bem como faz comparações com estudos do FMI (Fundo Monetário Internacional), Banco Mundial e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Foram analisadas 642 mudanças nos sistemas laborais.
Segundo o estudo, nos países desenvolvidos, predominam iniciativas para reformar a legislação do mercado de trabalho, no que se refere aos contratos permanentes. Já nos países em desenvolvimento, observaram ênfase maior em reformas das instituições da negociação coletiva. As duas dimensões estão presentes, com maior ou menor intensidade, na maioria dos projetos de reforma implementados. Outra observação geral indica que a maioria das reformas diminuiu o nível de regulamentação existente e teve caráter definitivo. Em 55% dos casos, as reformas visaram reduzir a proteção ao emprego, atingindo toda a população, tinham caráter permanente, produzindo uma mudança de longo prazo na regulamentação do mercado de trabalho no mundo.
As altas e crescentes taxas de desemprego formam o contexto que criou o ambiente para catalisar as iniciativas de reformas e disputar a opinião da sociedade sobre elas. De outro lado, os resultados encontrados no estudo não indicam que as reformas de redução ou aumento da regulação do mercado de trabalho tenham gerado efeitos ou promovido mudanças na situação do desemprego.
Vale prestar muita atenção ao fato de o estudo indicar que mudanças como essas na legislação trabalhista, realizadas em período de crise e que visam reduzir a proteção, aumentam a taxa de desemprego no curto prazo. Ademais, não se observou nenhum efeito estatístico relevante quando essas mudanças foram implementadas em períodos de estabilidade ou expansão da atividade econômica. Mais grave ainda, as reformas “liberalizadoras”, que facilitam o processo de demissão, tenderam a gerar aumento do desemprego no curto prazo. Esses resultados são corroborados por outros estudos produzidos pelo FMI e pela OCDE (2016).
Do total de reformas, destacam-se aquelas que diminuem os níveis de regulação, das quais: 74% trataram de jornada de trabalho, 65% de contratos de trabalho temporário, 62% de demissões coletivas, 59% de contratos permanentes, 46% de negociações coletivas e 28% de outras formas de emprego.
Promover a geração de empregos dever ser um dos principais objetivos de qualquer política econômica e a legislação precisa criar um marco regulatório que aperfeiçoe a segurança no emprego e favoreça a criação de mais e melhores postos de trabalho.
O sistema de relações do trabalho tem vínculos profundos com as demais políticas e instituições, bem como as reformas que o modernizam podem ser alavancadoras de novo patamar de desenvolvimento. É preciso aproveitar a crise para gerar a mais rápida transição para o crescimento, destravando obstáculos que têm impedido a retomada da economia. Mas mudanças precisam fortalecer a negociação e o diálogo de organizações representativas, em um ambiente institucional que valorize a solução dos conflitos pelas partes e que seja capaz de criar compromissos com o interesse geral da sociedade, elementos que atuam para favorecer e promover o desenvolvimento do país. 


[1]Diretor técnico do DIEESE.
[2]<Drivers and effects of labour market reforms: Evidence from a novel policy compendium”(IZA Journal of Labour Policy e no OIT Whats Work, Research Brief 05). Disponível em: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---inst/documents/publication/wcms_414588.pdf

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