Abordagem e caminho para uma outra reforma da previdência

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Clemente Ganz Lúcio[1]

Paulo Jager[2]

 

Mais uma vez a reforma da previdência está em pauta com a urgência de uma economia anêmica e que está na unidade de tratamento intensivo, apontando que a reforma que ajuste o custo total da previdência (setor privado, servidores públicos e militares) é condição para a retomada do crescimento econômico. Mais uma vez o desafio de pensar o futuro da proteção social em um mundo que promove profundas mudanças no sistema produtivo e no mundo do trabalho não é o eixo que estrutura o pacto social que sustentará o sistema protetivo futuro e seu financiamento. Neste artigo vamos abordar essas duas questões.

 

Reforma da previdência, crescimento e emprego

A reforma da Previdência vem sendo apresentada como uma espécie de elixir capaz de curar todos os males da economia brasileira. Alega-se de tudo a esse respeito: desde assegurar o equilíbrio contábil atuarial da própria Previdência Social até ser o alicerce para a construção de um próspero futuro para o país. Atribui-se à reforma poderes quase sobrenaturais. Não faz muito tempo, em 2016, o santo remédio consistia em outra proposta de emenda à Constituição Federal, que estabelecia o congelamento dos gastos não financeiros da União por vinte anos. A argumentação era semelhante, e os propalados benefícios, a começar pela retomada do crescimento econômico, também. Em 2017, o novo milagre seria produzido pela retirada de direitos e flexibilização das relações de trabalho, através da reforma trabalhista. Até agora esperamos, em vão, pelos resultados prometidos. A economia, após uma profunda recessão, segue andando de lado. E os empregos... ah!, os empregos. Esses não deram o ar de sua graça. Quando muito, são criadas ocupações de baixíssima qualidade.

Agora, no balaio da argumentação pró-reforma da Previdência, vale destacar a reiterada promessa de geração de empregos. Há quem diga até que não apenas a reforma vai gerar empregos, mas que se trata de uma condição necessária para evitar que o país entre novamente em recessão e, consequentemente, leve a uma piora do mercado de trabalho.

Mas, afinal, que mecanismo explicaria essa relação entre emprego e Previdência, segundo a visão daqueles que defendem a reforma? Apesar de não muito claro, é possível identificar, no rol anunciado de virtudes, dois supostos efeitos positivos que levariam à elevação do emprego: um, o crescimento do investimento privado, e outro, o aumento do investimento público.

O crescimento do emprego, decorrente do aumento do investimento privado (decorrente, por sua vez, da reforma), se daria devido à retomada da confiança empresarial. Um ambiente macroeconômico supostamente mais estável, previsível e favorável, proporcionado por contas públicas em equilíbrio intertemporal e taxas básicas de juros mais baixas, atiçaria o “espírito animal” do empresariado (residente e não residente no país), que faria as inversões em ampliação da capacidade produtiva, geraria empregos, renda, ampliação da arrecadação tributária, num ciclo virtuoso que nos colocaria na rota do crescimento sustentável. Aqui, o elemento-chave seria o retorno da confiança empresarial, que estaria abalada atualmente pela insustentabilidade das contas públicas. Por esse raciocínio, a confiança empresarial, e portanto o nível de investimentos, é função, fundamentalmente, da percepção sobre a situação das contas públicas.

Em primeiro lugar, cabe questionar essa subentendida explicação sobre as motivações relacionadas às decisões de investimento dos capitalistas. Tal decisão resulta fundamentalmente da comparação entre a receita necessária a viabilizar o investimento (que cubra os custos e remunere o capital) e a receita esperada com a realização desse investimento (que, por sua vez, passa pelas expectativas empresariais quanto às vendas futuras). Obviamente, um ambiente macroeconômico estável favorece a decisão de investir, mas jamais é razão suficiente. É preciso que as expectativas quanto à demanda (venda) futura sejam favoráveis. E isso passa, necessariamente, mas não apenas, por expectativas favoráveis quanto ao emprego, à renda e ao crédito.

Ora, todas as políticas que vêm sendo adotadas nos anos recentes, e também as anunciadas pelo atual governo, apontam no sentido contrário: contratos de trabalho mais precários, informalidade, restrição do crédito de longo prazo (por meio de bancos públicos), eliminação das políticas industrial e tecnológica, eliminação de barreiras alfandegárias sem qualquer contrapartida etc. são os elementos do contexto atual. Esperar que o emprego, especialmente aquele de qualidade, seja criado a partir da crença num suposto ajuste das contas públicas é ignorar o que ocorre no mundo real: acirradas disputas comerciais e tarifárias, adoção de programas governamentais ostensivos de estímulo à inovação tecnológica (a exemplo da indústria 4.0), de restrições à venda de empresas – mesmo privadas – a estrangeiros, de políticas abrangentes de compras governamentais, de afrouxamento monetário e de aumento do déficit público. E o que a reforma da Previdência tem a ver com isso?

Em segundo lugar, e talvez o mais relevante: quem disse que essa reforma da Previdência tornará o ambiente macroeconômico mais favorável? Os processos de consolidação fiscal experimentados por diversos países no período pós-crise de 2008 redundaram, via de regra, em um rotundo fracasso. As chamadas políticas de austeridade produziram uma enorme penúria social e não foram capazes de promover a retomada do emprego e do crescimento econômico, nem o ajuste das contas públicas. Ao contrário, como sucedeu na Espanha, na Itália, na Irlanda e em Portugal. Aliás, nesse último, a partir de 2015, houve uma guinada na política econômica e o gasto público passou a ser elemento central na recuperação. Mais que isso, foi a própria recuperação que permitiu a estabilização da relação dívida/PIB e a eliminação dos déficits públicos, pelo incremento da receita fiscal. Recentemente, temos a experiência argentina, até agora malsucedida.

O Brasil, por sua vez, produziu superávits primários durante mais de uma década, e apenas a partir do período da recessão, em 2015, passou a ter problemas significativos, mas conjunturais. A resposta, iniciada ainda sob a gestão Dilma/Levi e aprofundada sob Temer e seu “dream team”, foi a de tentar promover um forte corte de gastos públicos e estabelecer regras estruturais para um novo regime fiscal, com vistas a restaurar a confiança empresarial na política econômica. O resultado tem sido desastroso. Como dito, as políticas de austeridade não têm logrado promover a retomada da atividade econômica. Com o apelido simpático de “fadinha da confiança”, essa estratégia passou a ser questionada até por órgãos de viés ortodoxo no espectro teórico, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI).

Outra suposta razão para a reforma produzir efeitos benéficos ao emprego seria o aumento do investimento público, que decorreria da redução de despesas correntes ensejada pela reforma. O raciocínio é: gasta-se menos com a Previdência, tem-se mais para a realização de investimentos em infraestrutura. Nesse caso, estamos falando de qual horizonte temporal? Curto prazo? Longo prazo? Podemos supor que a queda na demanda agregada provocada pela queda no valor pago de benefícios fará o Estado dispor de recursos adicionais para investir mais? Se é assim, por que isso não está ocorrendo agora? Afinal, temos a Emenda Constitucional 95/16, e desde sua implementação o investimento público só despenca. E por que logramos crescer e gerar superávits por anos a fio sem que essas reformas tivessem sido feitas? Quem garante que esses recursos (a anunciada “economia” de R$ 1 trilhão), se forem subtraídos dos beneficiários da Previdência, serão utilizados para o investimento público? Quem garante que não serão apropriados na forma de serviço da dívida pública ou de redução de impostos?

É importante salientar que não havia e não há uma trajetória explosiva do gasto público no período recente da história econômica do país. Há, sim, uma queda brusca da receita fiscal associada a questões de ordem conjuntural no início, e acentuada posteriormente pelas medidas implementadas que só intensificaram a crise econômica. E isso ocorre, sobretudo, em razão da queda na atividade econômica. O corte nas despesas, nesse contexto, só agravará a situação de debilidade da demanda agregada.

Há de fato um envelhecimento da população brasileira. Há, também, um aumento da longevidade. Isso é indiscutível. Mas não se trata de um cavalo de pau demográfico. É um processo lento e, neste momento, estamos no auge do chamado bônus demográfico, com a maior parcela da população em idade para trabalhar. Contudo, estamos desperdiçando essa potencialidade.

Em vez de mobilizarmos nossa energia no debate de uma reforma proposta de forma abrupta, que exclui ou dificulta o acesso ao direito à proteção social, reduz os valores dos benefícios e, no longo prazo, aponta para o fim da Previdência pública, com sua substituição pelo sistema de capitalização, deveríamos estar engajados para assegurar o pleno emprego de nossa força de trabalho e promover o aumento da produtividade. Esses elementos, sim, constituiriam o caminho para a acumulação de recursos que, posteriormente, permitiriam o financiamento da Previdência em outras bases.

 

            Elementos para debater a previdência social do futuro 

O planejamento da Previdência Social exige uma visão prospectiva sobre o futuro, de um período que vai de três a cinco décadas, ou seja, deve-se imaginar quais serão as condições econômicas e sociais no horizonte e que tipos de proteção social e trabalhistas poderão criadas em 2050, 2070.

Um planejamento assim expressa compromisso solidário e intergeracional com todos, inclusive com aqueles que ainda nem entraram no mercado de trabalho ou nasceram. E qual seria o compromisso presente?

É necessário que se faça um exercício para imaginar em que condições o mundo do trabalho estará estruturado lá na frente e que tipo de mudança poderá acontecer no percurso, qual será a dinâmica econômica nessa trajetória temporal.

            O que acontece hoje indica que acontecerão mudanças disruptivas no sistema produtivo, que alterarão profundamente o mundo do trabalho, os empregos e as ocupações. A relação entre atividade humana e tecnologia passará por transformações estruturais, muitas das quais hoje não somos capazes de imaginar. A situação do momento indica a aceleração e expansão das inovações que passam a ocupar múltiplas atividades laborais, substituindo muitas, criando algumas. Uma característica que vem se impondo a partir das inciativas dos empregadores privados e públicos é a promoção de reformas trabalhistas que visam obter a máxima flexibilidade nas formas de contratação, de jornada de trabalho, na definição de salários e das condições de trabalho. O assalariamento clássico estável, com capacidade contributiva, vem dando lugar ao vínculo flexível instável, que tem baixa capacidade contributiva. A produtividade aumenta e o desemprego torna-se, mais uma vez, estrutural.

            Nesse mundo em mudança, a previdência social pública, solidária e de repartição deverá ser financiada com novas formas de contribuição, deslocando grande parte do financiamento, que atualmente vem da contribuição social sobre a folha salarial, para outras formas de arrecadação tributária. Para financiar de maneira sustentável uma das maiores despesas do orçamento público, uma reforma consequente começaria por uma reforma tributária inovadora e estrutural – ampla, progressiva e fundada na justiça e capacidade contributiva.

            A proteção que deveria ser buscada e construída, para financiar o futuro, teria que almejar a garantia universal dos direitos dos idosos, assegurando a eles dignidade econômica para sustentar a qualidade de vida na velhice. 

            Para isso, seria necessária uma complexa pactuação distributiva do produto econômico na forma de política pública universal. Se, de um lado, o “mercado” aposta muito na inovação tecnológica para incrementar a produtividade, de outro lado, a sociedade deveria assumir o comando e o controle sobre a regulação do uso da tecnologia, controlar os resultados de toda a modernização e distribuir os ganhos obtidos com todos.

A agenda sobre os tipos de emprego e ocupação deveria ser uma prioridade que carregasse para o centro do debate a redução da jornada de trabalho, o papel das políticas públicas universais e gratuitas de saúde, educação, transporte, moradia e as formas de tributação para mobilizar recursos para financiar essas políticas. No contexto dessa macropactuação entre produção e distribuição econômica, que considera a relação entre tecnologia, inserção ocupacional para todos e boas condições de trabalho, é que a previdência e a proteção social deveriam ser pensadas.

            A previdência social deve mudar para enfrentar os desafios futuros e tratar dos problemas atuais que ainda não foram resolvidos. O primeiro se refere à revisão de todas as desonerações e isenções concedidas. Seria necessário adotar o princípio orçamentário no qual quem é desonerado implementa iniciativa correspondente ao recurso financeiro correspondente à desoneração.

            Reorganizar o sistema de controle de pagamento à Previdência inibiria novos devedores, o que precisaria ser feito a partir da implantação do E-Social (escrituração eletrônica da folha de pagamento) e de outras formas de controle corrente do fluxo de pagamentos. A reorganização dos mecanismos institucionais para cobrar devedores já está atrasada demais.

            O trabalho de educação previdenciária deveria ser permanente e atuante, em um mundo do trabalho em mudança. O princípio da meritocracia no acesso às políticas sociais, tão caro aos liberais, é um fundamento atrasado e nefasto ao processo civilizatório, em uma sociedade com gigantescas e graves desigualdades. A meritocracia, nessa situação, é a confirmação de que o poder dos ricos se sobrepõe ao dos demais e, nesse quadro, a assistência social pode ser concebida como a esmola que o Estado garante aos excluídos. Manter um regime público de repartição solidária seria base para um mundo em transformação e evolução, com mais justiça.

            Qualquer mudança deveria ser prospectada considerando um quadro básico de referência e de mensuração de impactos, em diferentes cenários. Impactos sobre as condições de vida das pessoas, a dinâmica econômica nas comunidades e no território, sobre o financiamento do estado e das políticas públicas etc.

            As mudanças paramétricas devem observar, além dos elementos acima indicados, respostas à transição demográfica, ao aumento da expectativa de vida, às desigualdades do mundo do trabalho e as perspectivas de superação etc. Os princípios de justiça e equidade devem orientar as regras de participação de todos no financiamento que garantirá o direito à proteção.

            As transições devem ser planejadas de modo a valorizar as mudanças e os compromissos com as novas condições pactuadas de acesso e financiamento, envolvendo todos. As desigualdades precisam ser analisadas e consideradas nas transições, de um lado, observando as medidas que governo, empresas e sociedade implementarão para superá-las, de outro, criando regras de transição equânimes para condições estruturais de desigualdade. 

A idade é, com certeza, uma dimensão paramétrica fundamental que precisa ser tratada. Essa análise deve vir acompanhada das condições protetivas oferecidas para a vida laboral (maternidade, paternidade, acidente, invalidez, desemprego, doença etc.), do tamanho da jornada de trabalho, das condições de trabalho, do investimento em formação, das ocupações de interesse social, das oportunidades de trabalho para os jovens e na velhice etc.

            Nenhum aspecto deve estar interditado para o debate e a consideração e todas as regras paramétricas devem ser objeto de permanente, sistemática e criteriosa avaliação. Uma abordagem cuidadosa, qualificada e tolerante com as diferentes visões deve conformar o campo para a construção dos acordos sociais para um sistema protetivo universal, que muda para melhor e é capaz de enfrentar os desafios que se apresentam.

            Não cabe ao mercado – agente econômico interessado em ganhar e acumular riqueza – a hegemonia na definição da agenda, na imposição de medidas e de regras. Tecnologia, produtividade, educação e proteção social não podem ser socialmente regulados pelos agentes do mercado. A regulação deve ser macro e geral, coordenada pelas instituições criadas e sustentadas pela democracia – o Legislativo – que no espaço do contraditório é capaz de produzir as regras para a vida em sociedade e que distribui o resultado econômico do trabalho de todos.

            Questões tão fundamentais que atingem a todos devem estar estruturalmente reguladas na Constituição, exigindo sempre maioria qualificada para alterá-las. As experiências internacionais devem iluminar o debate para qualificar as escolhas. O mundo afirma de maneira peremptória que o regime de repartição solidária é aquele que melhor responde aos desafios das sociedades. As aventuras da capitalização geraram tragédias ao promover a pobreza e a desproteção na velhice.

O debate necessário sobre as mudanças em nosso sistema previdenciário, como de resto em nosso sistema fiscal, deve ser feito de outra maneira, envolvendo primordialmente o principal ator social por ela afetado, qual seja, a classe trabalhadora organizada. Além disso, caberia, respeitando-se os marcos regulatórios/institucionais de uma economia com as características da brasileira, que esse processo se desse no âmbito de uma grande negociação nacional, num ritmo compatível com essa participação e sem o apelo fácil a ameaças infundadas de fim de mundo, que estão longe de aportar a racionalidade necessária para lidar com algo tão relevante para a maior parte de nossa população.

 

 



[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE.

[2] Economista, supervisor técnico do DIEESE.

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