Desafios para enfrentar a agenda de redução do custo do trabalho no Brasil
Desafios para
enfrentar a agenda de redução do custo do trabalho no Brasil
Clemente Ganz Lúcio[1]
“Todas as manhãs a gazela acorda sabendo que
tem que
correr
mais veloz que o leão ou será morta. Todas as
manhãs o leão acorda sabendo que deve correr
mais
rápido que a gazela ou morrerá de fome. Não
importa
se és um leão ou uma gazela: quando o Sol
desponta o
melhor é começar a correr.”
Provérbio africano,
citado por Mia Couto em “A confissão da Leoa”.
1. Transformações
Profundas transformações no capitalismo subordinam à lógica do capital
financeiro o sistema produtivo, os Estados e as relações sociais, exacerbam a
concorrência, a competição e o individualismo. O mercado é uma categoria de uso
múltiplo para expressar, entre outros, o sujeito oculto e indeterminado que
representa especialmente o capital financeiro e o espaço de articulação de
complexas organizações e redes mundiais que operam os fundamentos e preceitos
neoliberais.
A atual estratégia de acumulação da riqueza patrimonial e financeira altera
a lógica de investimento das empresas; engendra força política para enquadrar
os Estados e controlar a propriedade da infraestrutura econômica e dos recursos
naturais; promove reformas institucionais para reduzir impostos e o tamanho do
Estado; impõem garantias de que o direito privado não será ameaçado pelas
formas coletivas de deliberação e pelo voto universal; desregulamenta o sistema
financeiro; protege a transmissão de heranças e a valorização de patrimônios e
ativos; elimina restrições para a apropriação privada da riqueza natural
(minério, terra, água, floresta, etc.); privatiza empresas estatais; incentiva aquisições
e fusões de empresas; protege o fluxo de pagamento das rendas oriundas das
dívidas públicas.
Essa estratégia ressurge a partir dos anos 70, cresce e se espalha pelo
mundo, articulando uma coalizão neoliberal que reúne agentes do sistema
financeiro, rentistas e fundos de investimento, corporações multinacionais e
nacionais, oligarquias políticas, organismos econômicos internacionais, burocracias
dos Estados nacionais. Na turbulência da história, a estratégia neoliberal
avança no mundo e no Brasil.
O cerne do projeto é universalização da competição e da concorrência,
desde o indivíduo encantando pela meritocracia até as cadeias globais de
agregação de valor. A concentração de renda e de riqueza são aceleradas, a
desigualdade é uma anomalia corrigida pela caridade. A meritocracia e o
individualismo são apresentados como valores universais e hegemônicos dessa
cultura de desenvolvimento para poucos escolhidos. O Estado é um agente
importante para animar a concorrência, proteger o mercado e garantir a
liberdade de indivíduos e organizações competirem.
Nessa grande onda que avança, perde encanto o tipo de desenvolvimento que
é resultado pactuado da relação entre o Estado e sistemas produtivos nacionais,
investidor e mobilizador da inovação para expandir a capacidade produtiva, promover
a difusão tecnológica e o incremento da produtividade, orientado para a geração
de emprego de qualidade, o crescimento dos salários e a formação dos mercados
internos de consumo. O Estado regulador da produção e distribuição do produto
social, que visa gerar um modo bom de viver e qualidade de vida para todos, minimizando
as diversas formas de desigualdade e gerando coesão social, está em desuso.
O pacto social do pós-guerra regulava a organização capitalista da
produção e da distribuição, de um lado, por meio de uma legislação laboral
protetiva e de um sistema de relações de trabalho que incentivava a negociação
para a solução dos conflitos em relação às condições de trabalho, às
contratações e demissões, à jornada e aos salários. De outro lado, impostos
progressivos geravam capacidade fiscal para o Estado promover políticas sociais
universais, sustentavam democracias que garantiam a liberdade, o Estado de
direito e a promoção do bem coletivo.
Depois da crise financeira de 2008, a coalizão neoliberal renovou sua estratégia
para impedir a resposta proveniente da indignação mundial contra a loucura
rentista. O sucesso dessa estratégia resultou que os Estados pagaram a conta da
crise com o aumento das dívidas públicas, com o ajuste fiscal e amplos cortes
de direitos sociais e trabalhistas. A recessão e o desemprego, por sua vez,
criaram a oportunidade e abriram o caminho para um redesenho institucional mais
ousado.
Nesse novo jogo, as instituições são requalificadas para promover a livre
concorrência das forças do mercado e da meritocracia. Por isso, aquelas instituições,
imperfeitas e inacabadas, que são
produto político do processo civilizatório que busca criar proteção coletiva
contra a ganância, a força e a estupidez humana, são, primeiro,
desqualificadas, e depois, reformadas para cumprir suas novas funções.
O Estado moderno criou, no caminho tortuoso da história e como resposta
aos conflitos concretos, as instituições como agentes promotores e operadores
de acordos sociais que compõem interesses particulares, setoriais e gerais, muitas
vezes consubstanciadas em regras gerais e específicas (Constituição e Leis), capazes
de regular e coordenar as relações sociais, econômicas e políticas. Sujeitos
coletivos se constituem para operar a representação de interesse e firmar
acordos, ou apresentar projetos gerais e disputar a escolha pelo voto
universal. A luta social adquire institucionalidade.
As transformações econômicas são radicais, promovem exacerbada
concentração de renda e riqueza e hegemonizam a competição como modo de vida. O
Estado e sua institucionalidade estão sendo profundamente reformados no mundo
para promover e garantir as transformações, a concentração e a competição.
No Brasil, esse movimento se expressa, por exemplo, no ataque aos
fundamentos constitucionais do Estado social da Constituição de 1988, momento
no qual se buscou um acordo social que combinava as bases para um novo padrão
de desenvolvimento produtivo, de democracia e de direito social. Nessas duas
décadas do século XXI, cresceram os ataques às transformações sociais
promovidas desde então, aceleradas e ampliadas pelos governos Lula e Dilma. “O
mercado” declara, também no Brasil, um retumbante basta! A coalização
neoliberal articula e promove no Brasil um lance ousadíssimo que rompe com o
substrato institucional da nossa democracia – quem ganha, governa! – e promove
em tempo recorde um conjunto de profundas reformas liberais. A Constituição de
1988, as Leis, as instituições, os marcos regulatórios, as empresas e
organizações, as representação de interesse, estão sendo transformados para
serem as bases de uma sociedade e economia entregue e integrada à ordem
neoliberal global.
Parte essencial desse complexo processo de transformações são as mudanças
na institucionalidade do mundo do trabalho para dar suporte e sustentar o acirramento
da competição e da concorrência econômica entre indivíduos, empresas e países. Reduzir
o custo do trabalho, obter a máxima flexibilidade para alocar o volume de
trabalho necessário e segurança jurídica para contratar e demitir, são objetivos
específicos dessa iniciativa no campo do trabalho. A estratégia é combinar em
cada contexto concreto: (a) institucionalizar (Lei e acordos) a flexibilidade
(contrato, jornada, salários e condições de trabalho) para ajustar o custo do
trabalho com ampla segurança jurídica para a empresa e (b) o desenvolvimento
tecnológico acelerado para impensáveis possiblidades de substituição do
trabalho humano. Desemprego, fragilidade na representação e precarização
compõem o cenário econômico e social do mundo do trabalho futuro.
1.
Reforma trabalhista no mundo
As mudanças institucionais avançam nos países desenvolvidos e em
desenvolvimento e um dos destaques são as reformas da legislação e do sistema
de relações de trabalho, que tem por objetivo: reduzir o custo do trabalho;
criar a máxima flexibilidade de alocação da mão de obra, com diversas formas de
contrato, ajustes de jornada e salário; reduzir a rigidez para demitir e os
custos de demissão, sem acumular passivos trabalhistas; restringir o poder das
negociações, inibir contratos ou convenções gerais em detrimento de acordos
locais realizados com representações laborais controladas; quebrar os
sindicatos.
As reformas das instituições dos
sistemas de relações de trabalho e da legislação trabalhista foram realizadas
por mais de uma centena de países depois da crise internacional de 2008. A OIT
(Organização Internacional do Trabalho) publicou um estudo (Drivers and
effects of labour market reforms: Evidence from a novel policy compendium), produzido pelos pesquisadores Dragos Adascalieti e Clemente Pignatti
Morano, sobre reformas legislativas laborais e de mercado de trabalho em 110
países, promovidas no período de 2008 a 2014. A pesquisa atualiza investigações
anteriores, bem como faz comparações com estudos do FMI (Fundo Monetário
Internacional), Banco Mundial e da OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico).
O estudo
identifica as crises econômicas e o desemprego como a oportunidade para
promover as mudanças institucionais que visam gerar respostas positivas sobre a
situação, seja para aumentar a oferta de postos de trabalho, reduzir a
desocupação ou aumentar a competitividade das economias.
Nos
países desenvolvidos predominam iniciativas para reformar a legislação do
mercado de trabalho, no que se refere aos contratos permanentes. Já nos países em
desenvolvimento, a ênfase foi maior em reformas das instituições da negociação
coletiva. As duas dimensões estão presentes, com maior ou menor intensidade, em
grande parte dos projetos de reforma implementados. Outra observação geral indica
que a maioria das remodelagens diminuiu o nível de regulamentação existente e
teve caráter definitivo. Há também casos em que ocorre o aumento da proteção
por meio da legislação ou da regulamentação da negociação, mas isso ocorre em
países com sistemas laborais ainda muito frágeis ou quase inexistentes.
Foram
analisadas 642 mudanças nos sistemas laborais nos 110 países. Em 55% dos casos,
o objetivo foi diminuir a proteção ao emprego, o que atingiu toda a população, e
tiveram caráter permanente, produzindo uma mudança de longo prazo na
regulamentação do mercado de trabalho no mundo.
As altas
e crescentes taxas de desemprego formam o contexto que criou o ambiente para
catalisar essas iniciativas e disputar a opinião da sociedade sobre elas. Entretanto,
os resultados encontrados no estudo não indicam que as reformas no mercado de
trabalho tenham gerado efeitos ou promovido mudanças na situação do desemprego
no curto prazo.
O estudo
indica que essas mudanças na legislação trabalhista, realizadas em período de
crise e que visam reduzir a proteção, aumentam a taxa de desemprego no curto
prazo ao diminuir as restrições para a demissão de trabalhadores em empregos
seguros. Também não se observou nenhum efeito estatístico relevante de curto
prazo quando essas mudanças foram implementadas em períodos de estabilidade ou
expansão da atividade econômica. No longo prazo, os efeitos são positivos sobre
a ocupação, devido à capacidade de multiplicar empregos parciais, temporários
e, na maior parte, precários.
Do total de reformas, destacam-se
aquelas que diminuem os níveis de regulação: 74% trataram de jornada de
trabalho, 65% de contratos de trabalho temporário, 62% de demissões coletivas,
59% de contratos permanentes, 46% de negociações coletivas e 28% de outras
formas de emprego.
A seguir se destacam três casos:
Espanha – usada como referência para a reforma no Brasil; México – que, junto
com Brasil, abre a porteira das reformas laborais na América Latina; e França –
uma das últimas iniciativas depois de anos de resistência do movimento sindical.
A
Espanha enfrenta, há décadas, graves
problemas econômicos que resultaram em um problema crônico de desemprego. As
taxas de desocupação para a população em geral já são altas, acima de 20%, mas,
para os jovens, são elevadíssimas – superiores a 40%.
A
nova reforma trabalhista espanhola foi aprovada em 2012, quando a economia do
país enfrentava a segunda recessão em 10 anos. Seguindo o mesmo receituário
aplicado para flexibilizar o mercado de trabalho, a reforma tratou, por um
lado, de diminuir a criação de postos de trabalho temporário, o que já era
resultado das reformas laborais anteriores que flexibilizaram regras com o
objetivo de criar esse tipo de vínculo. Agora a reforma elevou o custo de
indenização dos temporários de 10 para 12 dias por ano trabalhado. Outra medida
foi desestimular as demissões em momento de crise, mas facilitou os
procedimentos para realizá-las, ao diminuir o custo das dispensas (a indenização
por ano trabalhado caiu de 45 dias para 33). Também abriu a possibilidade para
reduzir a jornada de trabalho e o salário e limitou o poder das negociações
gerais ou setoriais. Em uma economia de câmbio fixo (Euro), a reestruturação
buscou ajustar o custo do trabalho com desvalorização salarial, para tentar
recuperar a competitividade.
Os
resultados logo apareceram. O desemprego passou de 21% para 27%, motivado pela
redução do custo de demissão dos trabalhadores com contratos de prazo
indeterminado. A redução do desemprego para 18% deveu-se ao surgimento de
empregos predominantemente precários. A flexibilidade acelerou a criação de
postos de trabalho no momento da retomada econômica, mas eram ocupações
temporárias, com prazo reduzido ou de tempo parcial.
A
reforma objetivou ampliar o protagonismo do empregador para regular custos
laborais e salários. Houve queda dos rendimentos do trabalho por causa da
aplicação dos novos mecanismos e da rotatividade, pois os contratados entram
ganhando menos do que os demitidos.
A
economia espanhola enfrenta o desafio decorrente dessa política: arrocho
salarial e precarização dos empregos reduzem a massa salarial, geram
insegurança e deprimem a capacidade de consumo do mercado interno, ou seja,
enfraquecem a demanda, geram pobreza e contribuem para o aumento da
desigualdade.
A
Espanha “inspirou” o projeto de reforma laboral brasileiro. Desde os anos 1980,
foram mais de 50 mudanças nas instituições e na legislação laboral daquele país,
sempre buscando saídas para a crise e o emprego. O problema continua, com o
desemprego crônico e um grande número de trabalhadores temporários ou jornada
parcial.
O
mercado de trabalho no México também
vai mal, com uma economia que se desestrutura, integrada e subordinada aos
Estados Unidos. A transformação do parque produtivo precarizou os empregos e
aumentou a informalidade. Atualmente quase 60% dos trabalhadores estão na
informalidade. A rotatividade com flexibilidade reduziu os salários e mais de
80% da população ocupada recebe menos de US$ 5 por dia – equivalente a US$ 150
por mês.
Em
2012, o México implantou uma reforma trabalhista que não entregou o que
prometeu: criar empregos e estimular a economia. Em 2017, em fevereiro, novas
mudanças entraram em vigor: retirada do direito de indenização para
trabalhadores com menos de seis meses de contrato laboral; liberação da
terceirização, situação em que os calotes sobre os trabalhadores se
multiplicam; salários cortados nas greves e regras mais rígidas para servidores
públicos; jornadas de trabalho flexíveis e pagas pelas horas efetivamente
trabalhadas (aqui denominamos de contrato intermitente); reforma na Justiça do
Trabalho e sindical.
México
e Brasil romperam em 2017 as frágeis portas da proteção social e laboral na
América Latina e incentivaram novas frentes reformistas neoliberais da
legislação laboral que já se implantaram em países como Argentina, Bolívia,
Peru, Chile, entre outros, buscando os mesmos objetivos.
Os
trabalhadores na França resistiam há
anos. Porém, o recém eleito Presidente Macron, por meio de cinco decretos, implementou
em setembro de 2017 a reforma para simplificar o código trabalhista e
flexibilizar o mercado de trabalho no país e, segundo suas palavras, “promover
transformação inédita do sistema social”.
Como já
ocorreu em outros países desenvolvidos, as mudanças trabalhistas na França
visaram: a flexibilização para as empresas, especialmente para pequenas e
médias, negociarem diretamente com os trabalhadores ou um representante dos
empregados (sem caráter sindical); colocar limite para a indenização por
demissão sem justa causa; reduzir as possibilidades de processos trabalhistas e
limitar o poder da justiça; apoiar programas de demissões voluntárias sem
assistência sindical; restituir flexibilidade para as organizações negociarem
salários e jornada de trabalho diretamente com os empregados, com a retirada
desse poder dos sindicatos; mais flexibilidade para as empresas contratarem sem
a interveniência das regras fixadas pelas negociações e pelos sindicatos, facilitar
demissões coletivas de empresas multinacionais com sede no país.
O
resultado concreto em cada contexto nacional e histórico se evidencia como
parte de uma orquestra mundial que padroniza transformações que homogeneízam as
instituições nacionais de regulação e proteção do trabalho. A competição poderá
operar com liberdade de concorrência a flexibilidade para formar custos, para
substituir trabalho humano por tecnologia, com segurança jurídica para as
empresas atuarem sem acumular passivos trabalhistas.
2. A reforma trabalhista no Brasil
Em 2003 deu-se
início a um esforço para conduzir um processo pactuado de reforma sindical e
trabalhista no Brasil. Foi instalado o Fórum Nacional do Trabalho, composto por
representações dos empregadores, trabalhadores e Estado, coordenado pelo
Ministério do Trabalho e Emprego. Durante dois anos, em mais de 500 horas de
mesa tripartite de negociação, mais outras centenas de horas de reuniões bilaterais
e por bancada, elaborou-se um projeto de reforma sindical que buscava
estruturar e organizar transformações no sistema de relações de trabalho no
país. Os fundamentos que orientaram a elaboração das mudanças buscavam o
fortalecimento da representatividade das entidades sindicais que assumiriam
progressivamente mais responsabilidades com processos negociais incentivados e
ampliados. Mecanismos ágeis e seguros de solução de conflito, direito de greve,
complementariedade entre o negociado e o legislado foram diretrizes
materializadas no projeto de mudança. Um plano de transição visava gerar
segurança para que as mudanças pudessem sem implantadas e produzir os efeitos
transformadores desejados.
O
acordo político indicava que a reforma sindical e do sistema de relações de
trabalho antecederia a reforma trabalhista (da legislação, da justiça, etc.),
porque o novo modelo sindical e de negociação resultante daria os elementos
para o contorno das mudanças da CLT, especialmente a delimitação entre o
legislado e o negociado e o modo de transição incentivada e voluntária da
situação presente para uma situação futura.
O
projeto parou no Congresso Nacional na crise de 2005, nas disputas internas no
mundo sindical (empregadores e trabalhadores) e diante das múltiplas
resistências às mudanças.
3.
Reforma trabalhista no
Brasil em 2017
No
primeiro semestre de 2017, em mais um lance institucional ousado, Legislativo e
Executivo transformaram profundamente a legislação trabalhista brasileira e o
sistema de relações de trabalho. Em síntese, a Lei flexibiliza a relação
laboral e permite amplo ajuste do custo do trabalho, deixando de ser um sistema
protetor dos trabalhadores para passar a proteger as empresas.
A reforma
alterou a hierarquia normativa em que Constituição, legislação, convenções
coletivas e acordos eram pisos progressivos de direito. A partir de agora, a
Constituição passa a ser um teto, a legislação é uma referência de direitos que
poderão ser reduzidos pelas convenções; os acordos poderão diminuir garantias
previstas em leis e convenções, o indivíduo poderá abrir mão de muito do que
foi conquistado coletivamente e a duras penas. Os trabalhadores e os sindicatos
“ganharam o livre direito” para reduzir salários e garantias, flexibilizar
contratos, ampliar ou reduzir jornada, quitar definitivamente os direitos, na
presença coercitiva do empregador. O acesso dos trabalhadores à justiça foi
limitado. Já as empresas terão inúmeros instrumentos que lhes darão máxima
garantia, proteção e liberdade jurídica para ajustar o custo do trabalho.
As mudanças
implantam vários novos tipos de contratos de trabalho (tempo parcial, trabalho
temporário, intermitente, autônomo exclusivo, terceirizado sem limite,
teletrabalho, trabalho em casa), que permitem ajustar o volume de trabalho à
produção no dia, na semana, no mês e ao longo do ano. Esses contratos podem ter
ampla flexibilização em termos de jornada (duração, intervalos, férias, banco
de horas, etc.). As definições do que é salário são alteradas e os valores
podem ser reduzidos, assim como outras obrigações legais. A demissão é
facilitada, inclusive a coletiva, com diversas formas de quitação definitiva de
débitos trabalhistas.
O poder
de negociação dos sindicatos é fragilizado com o “novo poder” de reduzir
direitos, a interposição de comissões de representação dos trabalhadores, nas
quais é proibida a participação sindical, ou com o empoderamento do indivíduo
para negociar diretamente. Essas medidas quebram o papel sindical de escudo
coletivo e protetor. Como já ocorre em outros países que adotam mecanismos
semelhantes, os trabalhadores serão incentivados e estimulados, por meio de
inúmeras práticas antissindicais e de submissão patronal, a não apoiar ou
financiar os sindicatos. Ficarão submetidos ao poder das empresas, pressionados
para aceitar acordos espúrios diante do medo de perder o emprego.
A Justiça
do Trabalho, que agora passa a ser paga, tem suas tarefas reduzidas à análise
formal dos pleitos. A lei criou uma tabela que precifica o ônus da empresa até,
no máximo, 50 vezes o salário do trabalhador!
São mais
de 300 alterações na legislação trabalhista, que operam um verdadeiro ataque
aos trabalhadores[2].
4.
Impactos
A
competição em escala global constrói estratégias mundiais que expandem as
ocupações no setor de serviços – já são mais de 2/3 dos empregos -, terceirizam
atividades das empresas e dos Estados e ampliam para padrões inimagináveis a
tecnologia para substituir trabalho humano. A agenda do desemprego/desocupação
estrutural volta como resultado do incremento tecnológico e da produtividade em
um campo aberto de competição. Essas transformações geram desigualdades
crescentes e suscitam reações que devem ser caladas.
As
reformas trabalhistas no mundo respondem aos objetivos da coalizão neoliberal
que tencionam no sentido da ruptura do diálogo social entre capital e trabalho,
subordinando o conflito à competição, negando reconhecimento e legitimidade à
representação sindical, submetendo os acordos sociais ao papel de confirmar as
regras desse novo modo de ser do capital e retirando da legislação o papel de
proteção do trabalho.
No plano
ideológico, o individualismo se sobrepõe aos interesses coletivos,
transformando cada pessoa “livre” em unidade de consumo, arrochada pelo
salário, mas libertada pelo crédito. A meritocracia amplia a competição e
quebra os laços de solidariedade entre os trabalhadores e os vínculos para a
sustentação dos sindicatos como seu escudo protetor.
As
transformações econômicas e dos sistemas produtivos, com tecnologia e
comunicação criando novos padrões e paradigmas, transformam a temporalidade dos
processos e das decisões. A agressiva competição entre empresas e nações e a demanda
pelo máximo retorno ao investidor, sem compromisso com a produção e a questão
distributiva, pressionam o sistema produtivo, na busca pelo menor custo, à
máxima flexibilidade para alocar e desmobilizar o trabalho na produção, ajustar
salários, limitar custos diretos e indiretos, reduzir passivos trabalhistas e aumentar
a segurança jurídica das formas flexíveis de contratos laborais.
As reformas
trabalhistas, na maior parte dos países, estão entregando a flexibilidade
propugnada. A crise econômica e o desemprego abriram caminhos para as reformas e
reduziram a capacidade de resistência. Os mercados de trabalho ganham cada vez
mais uma dinâmica dual, com cada vez menos empregos seguros e cada vez mais empregos
inseguros. As ocupações inseguras, garantidas pelas legislações, expandem o
emprego temporário, de jornada parcial, intermitente, autônomo ou por conta
própria, terceirizado ou promovido por agência de locação de mão de obra.
A
tecnologia ocupa cada vez mais os espaços do trabalho humano e o acúmulo de
capital físico expande a produtividade.
A relação
entre empregos seguros e trabalhos temporários está rompida porque não há mobilidade
entre essas formas de ocupação e são raras as transições dos trabalhadores
temporários para ocupações estáveis bem sucedidas.
As
diferentes formas de trabalho parcial e temporário, precário e instável, reduzem
estruturalmente a qualidade do emprego, impactam o crescimento da
produtividade, pois há o desinvestimento em formação e continuidade laboral
para promover avanços no processo produtivo.
A
insegurança no emprego, a situação de desemprego e as formas precárias de
ocupação geram novas doenças ocupacionais, como o estresse e a ansiedade, e
interferem não somente na vida no trabalho, mas em outras dimensões pessoais e
familiares.
A
população jovem é a mais atingida por esse conjunto de reformas e pela debilidade
dos mercados de trabalho para gerar empregos seguros. De um lado, a juventude é
estimulada pelo individualismo à competição, o que cria novos e desconhecidos
comportamentos sociais de isolamento. De outro, o fosso que separa gerações se
amplia, os jovens passam a ter uma perspectiva de vida de pior qualidade em
relação ao vivido pelos pais, apesar de terem investido mais em formação. Nesse
caso, a contradição é maior: o investimento em formação conduz a empregos
precários e com baixíssima remuneração. Observa-se ainda tendência geral de
aumento do emprego temporário entre os jovens.
As
reformas restringem o papel de representação coletiva de interesse dos sindicatos
para regular os conflitos reais da relação capital e trabalho. O resultado pode
ser uma sociedade submissa, devido à coerção da empresa, à força de polícia do
Estado, ao medo do desemprego, a uma desigualdade que desvincula as pessoas de
compromissos sociais, etc. Outras possíveis consequências são o aumento dos
conflitos trabalhistas e sociais, e diferentes formas de micro e macro
rupturas.
Nesse
mesmo tom de flexibilização, são promovidas revisões das políticas públicas de
emprego, trabalho e renda. Formação profissional, intermediação de mão de obra,
seguro-desemprego, apoio ao empreendedorismo, fragilizadas como parte do ajuste
fiscal e como parte das privatizações dos serviços públicos.
A pressão
para limitar os sistemas de seguridade e previdência social é permanente, com o
objetivo de reduzir seu custo e impacto fiscal e transferir para o setor
financeiro a proteção previdenciária como um negócio.
Os sindicatos,
instrumento de luta criado pela solidariedade dos trabalhadores, que constituem
um escudo coletivo de proteção da liberdade individual, estão em xeque.
5. Diretrizes para o enfretamento da agenda
liberal no mundo do trabalho
O
enfretamento das questões do mundo do trabalho deve ser parte de um projeto de
desenvolvimento, orientado pela cooperação que mobiliza a sociedade como força
produtiva constituída pela solidariedade e pelo compromisso com um modo bom de
viver e de promover qualidade de vida para todos. O Estado e a produção econômica
devem responder a este sentido geral e ganhar concretude nos contextos reais e
históricos, com soberania das nações, em um mundo integrado internacionalmente.
Para essa
construção, é fundamental insistir na invenção, criação e construção permanente
de espaços de diálogo social para promover acordos sociais e trabalhistas, que
se materializem em instrumentos regulatórios das relações de trabalho (acordos
e leis) e em políticas sociais universais de saúde, educação e proteção
previdenciária.
O exercício
do diálogo deve orientar-se pelo fortalecimento das instituições e o
reconhecimento dos sujeitos coletivos renovados como elementos estruturantes da
democracia construída, cotidianamente, pela prática de tratar dos conflitos
sociais.
Os movimentos sociais e o sindical
devem articular formas de mobilização que levem as pessoas a se associarem, em
diferentes espaços e situações, à defesa e promoção de projetos e propostas
orientados pela solidariedade, a igualdade e a liberdade.
Um
desafio fundamental é colocar as mudanças neoliberais em debate público,
colocando em xeque seu sentido e os impactos sobre a vida coletiva. Esse debate
deve visar ganhar os espaços institucionais com propostas e processos
deliberativos capazes de recolocar o sentido geral da produção econômica, da
vida em sociedade e do papel do Estado.
Reinventar
as formas de associação que resistem e colocam alternativas, materializadas em
novas formas de organização e representação, desde o local de trabalho e também
do local de moradia, ou em outros espaços ou circuitos de identidade.
No caso
da organização sindical, superar o conceito restrito de categoria, que
fragmenta a representação dos trabalhadores, por formas mais agregadas de
representação. A reorganização sindical deve levar a fusões, agregação de
representação para formar grande uniões de representação de interesse.
Uma nova
agenda do trabalho deve compreender a mudança na composição setorial dos
empregos, o papel desruptivo da tecnologia e derivar uma agenda renovada para
dar ao trabalho novo significado social, político e econômico.
Essa
agenda deve combinar propostas que tratam das formas de contratação, com a
jornada de trabalho e as formas de renda. Formas flexíveis de contrato devem
ser protegidas por sistemas universais de políticas públicas de emprego; a
redução estrutural da jornada de trabalho deve ser uma resposta ao incremento
da produtividade; ocupações de interesse social devem ser desenvolvidas e
ganhar predominância na vida social, assim como aquelas voltadas para a
cultura, o lazer, o esporte e o cuidado do outro. Repensar formas universais de
renda.
Essa
alternativas, além do diálogo social, exigem um novo sistema tributário
progressivo, internacionalmente articulado, capaz de redistribuir o produto
econômico (renda e riqueza).
O Estado
deve estruturar um sistema público de emprego, trabalho e renda que deve ser
orientado para a qualificação do trabalho como elemento estruturante da vida em
sociedade.
A oferta de educação de qualidade, com
a inserção retardada no mercado de trabalho, pela ocupação em atividades de
interesse social e coletivo, culturais, artísticas, esportivas, entre outros,
bem como, apoiadas por um sistema público de proteção e promoção da
participação dos jovens em termos de renda e garantias laborais futuras.
Outro desafio será estruturar sistemas
universais de seguridade e previdência social para a vida laboral e a
aposentadoria, assentado em novas formas de contribuição (parte de uma reforma
tributária profunda).
As profundas transformações no sistema
produtivo e no mundo do trabalho exigem, desde já, atenção também para a
organização capaz de recolocar a solidariedade na base da unidade dos
trabalhadores, criar formas organizativas para novos contextos de trabalho, de
uso do tempo, de como as pessoas se colocam nas e para as relações sociais no
cotidiano. As formas precárias de trabalho devem levar a imaginar modos mais
agregados de representação, capazes de lutar para recriar instrumentos de
regulação dos contratos, jornadas, salários e condições de trabalho. Será
preciso desenhar processos de mobilização e manifestação de interesse,
recuperar a formação política que valoriza e favorece a sociabilidade, a
justiça, a igualdade, a tolerância. Será necessário ressignificar e recriar a
luta, assim como construir alianças com os movimentos sociais e populares.
Referências bibliográficas
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Clemente Pignatti. Drivers and effects of labour
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